O mito: construção racional-simbólica
A princípio temos a idéia de mito ligada a uma explicação estapafúrdia para algum acontecimento, algum feito, que, no entanto, não tem qualquer sentido de verdade, lógica e racionalidade. Aliás, o mesmo opera em uma lógica distante e diferente do que o pensamento dito científico e dito moderno nos coloca como explicação de mundo. Assim, mitos seriam apenas histórias fantasiosas que operam em um outro sentido que não o lógico-ocidental-cartesiano e que por isso seria inválido. A própria antropologia evolucionista resolveu o problema dos mitos associando-os a sociedades “primitivas” frente a fenômenos impactantes (como a morte, a origem do mundo). Seriam explicações primitivas, falsas; nada além de uma proto-ciência (LOPES DA SILVA; 2005; p. 324).
Todavia, podemos encontrar esses mitos (mitos fundadores, explicações para uma característica) em diversos povos do mundo, através da história, e/ ou encarcerados dentro de outras narrativas maravilhosas, onde acabam encontrando colaborações das ciências para que “deixem” de ser mitos”” (vide os inúmeros estudos e tentativas de explicações para eventos bíblicos, tais como a travessia do mar Vermelho feita por Moisés). Além disso, o mito tem um fundamento moral, no qual podemos dizer que as explicações dadas servem para afirmar ou negar determinados tipos de comportamentos e buscam dar explicações para elementos nocivos ou positivos para as sociedades envolvidas que aparecem então em forma de leis, regras, normas, tabus. Claude Levi-Strauss viria a discutir em sua antropologia estruturalista justamente essa função do mito, de estruturar sociedades a partir de totens e portanto tabus.
A sincronicidade e os arquétipos (presentes, por exemplo, na teoria jungiana) apresentados em mitos de diversos locais, em diversas culturas, nos dão, porém, a idéia da importância do mesmo nos nossos dias. Mais do que pensar esses mitos, é importante pensar que a sua lógica corresponde a uma lógica outra, anti-cartesiana por vezes.
Mitos podem ser vistos como narrativas simbólicas da origem do mundo. Por serem simbólicos, é necessário conhecer esses símbolos para compreender e traduzir esses mitos, que no entanto, farão sentido àqueles que compartilham desses símbolos, dentro de um contexto cultural.
Pensar que os mitos não possuem sentido, racionalidade, é deixar de lado que essas explicações fazem sentido para quem as utiliza. Assim, não são mitos e sim uma realidade, algo tão palpável, sensível e palatável quanto a física quântica e suas possibilidades teóricas, pautadas em uma racionalidade dita científica. Não podemos supor que o mythos se oponha ao logos, pelo simples fato de que há um logos dentro do mito, ou seja, o mito assimila e exercita esse logos. E a maior prova disso é o senso comum (LOPES DA SILVA; 2005; p. 327). Se a explicação é suficiente, ela serve mais do que conceitos científicos arrojados e que não fazem sentido aos interlocutores.
Esse tipo de pensamento positivista, herdeiro de Auguste Comte pode ser alocado em sua “Lei dos Três Estados” que coloca esses mitos no estado teológico, no qual “se explica a realidade apelando para entidades supranaturais (os ‘deuses’), buscando responder a questões como ‘de onde viemos?’ e ‘para onde vamos?’; além disso, busca-se o absoluto”; (ARON; 2007) Porém na teoria de Comte este é o mais afastado do estado derradeiro e último, o positivo, ligado ao como, a ciência e ao progresso. Os mitos traduzem sociedades e culturas, o que nos faz pensar que não devemos deslocar os mesmos como simples narrativas, transformando-os em lendas que, fora do contexto, se transformaram em mais uma história moralizante e/ ou fantástico-fantasiosa.
Os mitos, por serem transmitidos através da oralidade, perdem em poder em relação da palavra escrita. Da mesma forma que um contador arroja o seu conto a plateia, alguém que compila os mitos em forma de lendas, com a boa intenção (devemos crer nisso?) de divulgar a cultura (no caso, a indígena, apenas como um exemplo), vai se utilizar de conceitos que pertencem àqueles que leem e não aqueles sobre os quais se fala. Os mitos, muitos verdadeiras cosmologias, com altíssimo grau de complexidade, são arranjados sob a forma escolhida pela editora, nivelado a histórias infantis, pueris, retiradas de contexto lógico-racional e visto como uma história contada ao pé da fogueira apenas como entretenimento, e não como uma forma de viver o mundo, viver no mundo e entender a si e ao outro.
Considerações finais
Percebemos que os mitos apaziguam o espírito humano, tanto quanto a ciência. Servem de explicação para coisas que não temos como ou não podemos explicar. Diferem da ciência e da filosofia por se pautar em lógicas outras, mas por ser amplamente aceito nas culturas que estruturam (havendo uma relação dialética entre a estrutura da sociedade e o mito), possui caráter de verdade.
Por ser simbólico, dá margens a uma ampla variedade de interpretações, mas que, no entanto, não deve ser visto como lenda (algo preso no passado, na memória, estático), ou destituído de seu contexto original e sim como algo dinâmico e fonte de explicações para a sociedade em que é presente.
________________________________________
Bibliografia
LOPES DA SILVA, Aracy; Mito, razão, história e sociedade: inter-relações nos universos sócio-culturais indígenas, in A temática indígena na escolaI (coletânea); MEC/MARI/UNESCO; Brasília: 2005.
ARON, Raymond; As etapas do pensamento sociológico; Dom Quixote, Rio de Janeiro: 2007.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito / Joseph Campbell, com Bill Moyers; org. por Betty Sue Flowers; tradução de Carlos Felipe Moisés. - Palas Athena; São Paulo: 1990.